10 outubro 2016

Burlões estrangeiros ‘atacam’ proprietários portugueses


Aliciam incautos com meganegócios imobiliários, mas acabam por roubar o dinheiro. Gangues de burlões estrangeiros que atuam na Europa estão a aliciar proprietários de imóveis portugueses para falsas transações imobiliárias. Uma burla que está a ser investigada pelo departamento de criminalidade organizada da polícia federal belga, em Bruxelas. O Expresso falou com alguns desses proprietários que estiveram em contacto com os indivíduos que se fazem passar por grandes investidores imobiliários. O esquema é conhecido por Rip Deal, uma burla envolvendo uma compra virtual de casas e terrenos, e não é a primeira vez que faz vítimas em Portugal.


Paula Santos, proprietária de um imóvel localizado em Mértola, colocou um anúncio no Green-Acres, um site francês que se tornou popular quando os franceses ‘descobriram’ Portugal. O anúncio ao edifício à venda por €600 mil no centro da vila alentejana encontrava-se publicado no portal há menos de um mês quando Paula Santos foi contactada por um indivíduo, com um número não identificado, que se apresentou como intermediário de um grande investidor imobiliário.

“Toda a abordagem foi estranha: pouco depois de me dizer que estava muito interessado no imóvel, propôs pagar-me a passagem de avião para Genebra para nos encontrarmos e fazermos logo negócio. Estranhei e perguntei se não queria ver o edifício primeiro. Disse-me que não era necessário e que pelas fotografias percebia perfeitamente que seria uma boa aplicação para o investidor. E foi muito insistente, pois perante a minha recusa continuou a ligar-me durante vários dias”, recorda ainda a proprietária, que passou por esta experiência há dois meses.

Mais longe foi Rosalva Fonseca, diretora-geral da Dom Senhorio, empresa com 30 anos de experiência imobiliária, com uma carteira mista de 2000 imóveis situados em território nacional e em Espanha. Em maio deste ano, durante o Salão Imobiliário de Paris, recebeu uma chamada que lhe soou familiar. A mesma conversa, os mesmos argumentos que já que já tinha ouvido há três anos, revelavam que os burlões continuavam a atuar sem castigo. Nessa altura, contactada com uma abordagem similar à de Paula Santos, mas através de um número identificável, Rosalva respondeu afirmativamente à proposta de um encontro em Genebra.

"Disse-me que representava uma empresa familiar e que era lá que estava o advogado que iria acompanhar o processo, mas que este não podia deslocar-se a Portugal. Estava interessado num palacete situado em Punta de la Mona, perto de Granada, à venda por um milhão de euros no site da nossa empresa, em Espanha", conta, acrescentando que resolveu aceitar o desafio de analisarem a proposta para o imóvel do seu cliente espanhol. O primeiro sinal de alerta, digerido a posteriori, foi a súbita mudança do ponto de encontro assim que o indivíduo percebeu que Rosalva tinha familiares em Genebra. "Resolveu marcar antes para Milão, num hotel de luxo, no Rosa Grand Milano." 

Assim que chegou à receção do hotel, Rosalva sentiu-se observada. "Parecia um filme: estavam dois sujeitos lá fora que me controlavam todos os movimentos. Pouco tempo depois surgiu um terceiro indivíduo que veio diretamente ao meu encontro como se já me conhecesse." A proposta, percebeu rapidamente Rosalva, era pouco clara. "Reforçou o interesse e disse-me que poderíamos fechar rapidamente o negócio, mesmo sem ver o palacete, pois percebia-se pelas fotografias que era um imóvel excecional, numa zona de grande rentabilidade." A única questão era o pagamento: "Disse que o dinheiro disponível estava todo em notas de 500 euros mas explicou-me a dificuldade que existia em abrir contas bancárias com essas notas, um processo que leva sempre mais tempo, por precaução dos bancos. Por essa razão, propunha que o meu cliente lhe entregasse 350 mil euros em notas pequenas (para que ele pudesse abrir uma conta bancária sem levantar suspeitas) e receberia em troca o mesmo valor em notas de 500 euros. Depois, marcava-se a escritura por um valor declarado de 350 mil euros. E o restante seria dado em cash."
Apercebendo-se de imediato que se tratava de uma tentativa de burla, a responsável da Dom Senhorio não desarmou, referindo apenas que iria falar com o seu cliente. "Eles tinham muita urgência, disse ele. Estavam a fazer transações deste tipo em todo o mundo e era uma oportunidade a não perder. E disse-me que mandariam alguém ao meu escritório em Lisboa, em breve, para receber o dinheiro e agilizar a operação."
Assim que se despediram, Rosalva Fonseca dirigiu-se à esquadra da polícia, no número 11 da Via Fatebenefratelli, para apresentar queixa. "Depois de alguma dificuldade de comunicação, porque eles não falam inglês e eu não falo italiano, entenderam o que lhes estava a relatar. E a reação foi inesperada: disseram-me que muita gente estava a ser burlada dentro daqueles moldes e olharam para mim como se olha para os turistas que aqui apresentam queixa quando são assaltados no elétrico 28", conta Rosalva, sublinhando a importância do mediador na representação dos proprietários, pois são menos vulneráveis financeiramente a situações pouco claras.

Este modus operandi não se está a circunscrever a Itália. Os burlões até se deslocam a Portugal. Como aconteceu com Nuno T., gestor comercial que prefere o anonimato e que foi abordado pelo mesmo grupo, ou outro que segue o mesmo esquema, devido a uma herdade de que era proprietário na zona de Sintra e que estava à venda por €900 mil.
Depois de vários telefonemas feitos por um indivíduo que falava inglês com forte sotaque italiano, Nuno foi posto em contacto com um português que supostamente trabalharia para esse familly office e que se chegou a deslocar a Sintra para ver a herdade. "Percebia-se logo que era esquema. A conversa dele é que tinham muita liquidez e estavam a comprar casas em todo o mundo. Num dos três encontros que tivemos disse-me que tinham acabado de comprar um palacete na Toscânia por 30 milhões."

Um contacto do departamento de criminalidade organizada da polícia federal belga foi o empurrão que faltava para Nuno desvanecer as suas dúvidas e cortar pela raiz os contactos com esse indivíduo. "A polícia belga queria saber as datas e as horas dos contactos telefónicos, os endereços dos locais onde eram marcados os encontros, em que sites eu tinha publicado o meu anúncio, que tipo de pedidos eram feitos pelos interlocutores e se eu conseguiria identificar estas pessoas, se me mostrassem fotos", conta o gestor.

Sem castigo

O Expresso contactou o departamento criminal, em Bruxelas, e a esquadra em Milão, que preferiram não prestar declarações. Já a Polícia Judiciária adiantou não ter registo de queixas relacionadas com este tipo de burla. "As vítimas sentem alguma vergonha em denunciar este tipo de casos às autoridades, já que também elas têm a noção de que pisaram o risco", salienta uma fonte oficial da PJ. Muitas delas, acrescenta este responsável, ao aperceberem-se de que poderiam ganhar algum dinheiro extra, "tentaram a sua sorte". Em todo o caso, a PJ aconselha qualquer vítima a pedir auxilio à polícia, mesmo que o caso já tenha tido lugar há algum tempo.
O primeiro crime de Rip Deal a ser julgado em Portugal ocorreu em 2012 e envolveu dois homens, naturais da Itália mas croatas de nacionalidade, que foram apanhados num hotel de luxo em Lisboa momentos antes de fecharem um negócio com um empresário espanhol que tinha imóveis em Benidorm e Alicante. A dupla andava a ser investigada pela PJ por outros golpes perpetrados contra cidadãos portugueses. Tendo cumprido um ano em prisão preventiva, acabaram por ser absolvidos por não se conseguir provar em tribunal a associação criminosa. "E, quanto à burla, ficou resolvida com a restituição do dinheiro ao ofendido", conta o "JN" publicado a 12 de julho de 2012.
Desde essa altura que estes indivíduos passaram a estar referenciados pelas polícias europeias. Mas o esquema continua a ser aplicado em 2016.

Fonte: Expresso

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