27 outubro 2012

Ter ou não ter (onde cair morto)


Por Rui Alpalhão*

Imobiliário”, o termo pelo qual designamos os pedaços de terra com existência legal e as beneficiações neles erigidas, é uma herança francesa, tradução de “immobilier”. É uma categoria de ativos peculiar, pois, sendo sempre parte da riqueza, frequentemente não é capital. A distinção entre riqueza e capital é querida aos economistas: capital é aquela parte da riqueza que os seus detentores destinam à reprodução.
O imobiliário pode ser capital, quando os detentores de riqueza destinam parte desta à reprodução e elegem adquirir imobiliário para rendimento, seja por via de mais-valias em transacções futuras seja, mais prosaicamente, através de arrendamento. 

A parte da riqueza que não é capital não é destinada à reprodução, mas sim à fruição dos seus detentores, e também pode materializar-se em imobiliário, quando aqueles decidem fruir a riqueza de que dispõem adquirindo imóveis para uso próprio.

Até 1974, a maioria do imobiliário português era capital. Poucos portugueses podiam ser proprietários, sobretudo de imobiliário, por natureza um ativo de valor unitário elevado. Esta situação alterou-se profundamente, primeiro com a instituição da propriedade horizontal, em 14 de Outubro de 1955, e, sobretudo, com a popularização do crédito à habitação depois da nacionalização da banca, em 11 de Março de 1975. Estes dois movimentos permitiram tornar a aquisição de casa por pessoas de rendimentos relativamente baixos possível: a propriedade horizontal baixou o preço dos imóveis susceptíveis de serem adquiridos (uma fracção, por definição, custa menos do que um prédio) e a banca nacionalizada bonificou vigorosamente o crédito à habitação, multiplicando o poder aquisitivo dos candidatos a proprietários.

Para cereja no topo do bolo, foram acrescentados uns incentivos fiscais, uns encapotados – valores patrimoniais, base de incidência da então Contribuição Autárquica, nanificados pela inflação e não corrigidos -, outros transparentes – isenções de Contribuição Autárquica, e depois de Imposto Municipal sobre Imóveis, durante dez anos para casas de valor relativamente baixo. Os governos da 3ª República fizeram muito por transformar cada português num proprietário, muito mais aliás do que fizeram pelo capitalismo popular. Esta política foi um sucesso, os portugueses fizeram-se proprietários, não capitalistas. Hoje 74% dos portugueses são proprietários, o que compara com 43% dos alemães.

Em Portugal, “não ter onde cair morto” está longe de ser um elogio. Em boa medida graças às políticas públicas, cerca de ¾ dos portugueses têm hoje onde cair mortos. O recentemente apresentado Orçamento do Estado para 2013 é o epitáfio desta política de incentivo à propriedade. O crédito abundante e barato desapareceu na voragem da crise da dívida soberana, e as isenções de IMI e as taxas baixas passam a ser uma miragem. Ter onde cair morto ficou caro.

*Presidente da Comissão Executiva FundBox, Professor Associado ISCTE-IUL

Fonte: Público

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