João adquiriu, há já vários anos, uma casa "à beira-mar plantada", tendo celebrado a competente escritura pública perante notário. A referida aquisição foi devidamente registada junto da respetiva Conservatória do Registo Predial. Desde que é proprietário do imóvel em causa, João tem sempre pago atempadamente o correspondente Imposto Municipal sobre Imóveis. Perante o exposto, quem será o legítimo proprietário do referido imóvel em 2 de janeiro de 2014?
A resposta é aparentemente simples: tudo aponta para que seja o João o proprietário, tanto mais que um conjunto variado de entidades públicas desde sempre vem reconhecendo o referido direito de propriedade.
Sucede, porém, que os já mui antigos Decreto Real de 31 de dezembro de 1864 e Código Civil de 1867 vieram determinar os bens que integram o domínio público marítimo, sendo certo que dele fazem atualmente parte integrante, entre outros, as margens das águas costeiras e territoriais e as margens dos cursos de água navegáveis ou flutuáveis.
Adicionalmente, o nosso legislador veio esclarecer que as referidas margens correspondem a uma faixa de terreno com uma largura de 50 metros contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas do mar e das águas navegáveis ou flutuáveis sujeitas à jurisdição das autoridades marítimas e portuárias, e com uma largura de 30 metros relativamente às demais águas navegáveis ou flutuáveis. A lei esclarece ainda que, no caso de arribas alcantiladas, a largura da margem é contada a partir da crista do alcantil. Enfim, toda uma panóplia de conceitos claríssimos e de facílima verificação!
Nestes casos, presume-se que as referidas parcelas pertencem ao Estado, devendo o proprietário sujeitar-se a pagar uma taxa anual de valor significativo pela referida ocupação, para além de diversas condicionantes de ordem administrativa, nomeadamente no que toca à utilização e transmissão do referido imóvel. Ora, como foi dito, a casa do João situa-se à beira-mar...
Mas não haverá forma de ilidir a essa presunção? A Lei n.º 54/2005 determina que é possível obter o reconhecimento da propriedade privada sobre a referida parcela de leitos e margens mas, para o efeito, é necessário interpor uma ação judicial contra o Estado até 31 de dezembro de 2013.
Não contente com o facto de passar o ónus da interposição da ação para os proprietários, o legislador determinou ainda que os mesmos terão de provar não só que os imóveis em causa lhe pertencem, como já eram de utilização privada antes de 31 de dezembro de 1864, ou, se se tratar de um imóvel em arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868.
Uma coisa é certa: seja qual for a opção tomada, a lei não deixa outra alternativa aos proprietários em causa que não seja uma verdadeira "descida ao inferno". Ou bem que interpõem a referida ação judicial, sujeitando-se à prévia obtenção de prova verdadeiramente "diabólica", com os custos e tempo a elas inerentes; ou bem que decidem aguardar pelo dia 1 de janeiro de 2014 sem nada fazer, sujeitando-se a ver o seu direito de propriedade privada esfumar-se a favor do Estado.
É certo que se encontra atualmente a ser discutido um conjunto de quatro iniciativas legislativas, nomeadamente com vista à prorrogação ou simples eliminação do prazo para a obtenção do reconhecimento da propriedade privada. No entanto, faltando pouco mais de seis meses para a atingir, exige-se uma resposta urgente do legislador a este respeito, que proteja os interesses legítimos dos particulares em causa e que no mínimo imponha ao Estado um conjunto de obrigações nesta matéria.
Por Gonçalo de Almeida Costa, Advogado associado sénior da CCA Advogados
Fonte: OJE

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