Quando ouço comentadores defenderem que nem todos devem ter casa própria ou tirar um curso superior, pergunto-me se dirão o mesmo dos seus filhos.
Num sinal dos tempos, o crédito à habitação ganhou má fama em Portugal, conseguindo a proeza de ser um dos raros temas onde os extremos ideológicos se tocam. À Esquerda, vêem-no como uma cilada que a banca, ardilosamente, montou para explorar as massas. À Direita, apontam-no como exemplo da errada aposta em sectores de bens não-transaccionáveis, que terá escancarado as portas da República à ‘troika'. Alegam também que contribui para a rigidez do mercado laboral e para o fraco dinamismo do arrendamento.
Embora haja verdade em algumas desta considerações, tanto uns como outros exageram na apreciação globalmente negativa da massificação da casa própria que teve lugar desde 1990. Na verdade, este fenómeno tem um impacto positivo no conjunto da sociedade que, a prazo, supera quaisquer efeitos desfavoráveis.
A primeira vantagem tem a ver com a sua importância para a democracia: o crédito à habitação é um dos factores que contribuem, a médio e longo prazo, para a formação de uma classe média forte, que constitui o pilar de qualquer democracia. A par de outros elementos da moderna economia de mercado, a compra de habitação própria contribui para a "desproletarização" da sociedade, alienando a base eleitoral das forças que se opõem à democracia parlamentar. Quando temos algo a perder, somos menos receptivos a radicalismos e a sonhar com revoluções. Vimos isso em Portugal, nas últimas décadas, com a defesa da ditadura do proletariado a ceder o lugar às célebres questões "fracturantes".
Embora o veja com as embaciadas lentes marxistas, a extrema-esquerda está consciente das consequências sociais e políticas do fenómeno. Pode demorar décadas, mas a massificação da casa própria transforma um povo de proletários numa sociedade de proprietários. Os números provam-no: em 1960, havia 993 mil famílias com casa própria em Portugal, contra um milhão e meio em imóveis arrendados. Em 2011, após décadas de democratização do acesso ao crédito, já acontecia o inverso: 2,9 milhões com casa própria, face a apenas um milhão de inquilinos.
Em segundo lugar, é importante referir que, se feito com pés e cabeça, o crédito imobiliário é um endividamento virtuoso, ao contrário do financiamento ao consumo ou da dívida contraída para pagar défices. Pois com a passagem de património de uma geração para outra, acumular-se um capital que poderá servir, dentro de 20 ou 30 anos, para financiar novos negócios e investir na educação dos nossos filhos e netos.
Mais: é uma acumulação de capital democrática, ao contrário de outras do passado, que tiveram uma natureza mais "extractiva" do que inclusiva, beneficiando sobretudo algumas famílias que prosperavam à sombra dos contratos monopolistas dos governos da monarquia e do condicionamento industrial do ditador de Santa Comba Dão.
Esta mentalidade conservadora e anti-concorrencial - "corporativa", no sentido salazarista do termo - ainda sobrevive em parte da Direita, alimentando preconceitos de classe que teimam em sobreviver. Sem surpresa, esta forma de pensar costuma vir ao de cima na discussão sobre o mercado imobiliário, mas também quando se fala da massificação do acesso ao ensino superior. Não por acaso, outro elevador social aberto nas últimas décadas.
Quando ouço alguns comentadores dizerem que "nem toda a gente deve ter casa própria", ou que "nem todos têm de ser doutores", pergunto-me se dirão o mesmo dos seus filhos. Não creio, porque mesmo que sejam filisteus até à medula, os "meninos" hão-de se tornar senhores doutores ou engenheiros. E se não comprarem casa, herdá-la-ão.
Não defendo, claro, que todos devam tirar um curso e comprar casa. Em muitos casos, a opção pelo arrendamento pode fazer mais sentido do ponto de vista económico, para além de facilitar a mobilidade das pessoas.
Mas todos os portugueses devem ter a oportunidade de poderem almejar à compra da sua própria habitação. E de o fazerem com preços e condições de financiamento razoáveis. Eis-nos chegados ao terceiro aspecto que importa lembrar e que, numa sociedade civilizada, será o mais importante: igualdade de oportunidades. Sem isto não há genuíno liberalismo. Apenas compadrio.
Por Filipe Alves
Fonte: Económico
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