Nas sociedades modernas acentuou-se a protecção do património cultural, motivada pela constatação de que este se encontrava ameaçado de destruição, bem corno afetado pelas causas naturais de degradação. Concluiu, nesta sequência, a Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura UNESCO), reunida em Paris em 1972, que "a degradação ou o desaparecimento de um bem do património cultural e natural constitui um empobrecimento efetivo, do património de todos os povos do mundo", pelo que urgia adoptar medidas de salvaguarda dos bens do património cultural.
Neste âmbito, a Convenção para a Proteção do Património Mundial, Cultural e Natural procurou estabelecer quais os bens naturais e culturais que podem vir a ser inscritos na Lista do Património Mundial, fixando os deveres dos Estados-Membros quanto à identificação e proteção desses bens.
Nesta sequência, diversos monumentos, sítios ou conjuntos vieram a obter a classificação como Património Mundial da UNESCO, sendo que, para a questão aqui em análise, salientamos, em particular, os conjuntos classificados, mais concretamente os Centros Históricos classificados como Património Mundial da UNESCO – Centro Histórico de Angra do Heroísmo, Centro Histórico do Porto, Centro Histórico de Évora e Centro Histórico de Guimarães.
Os referidos conjuntos classificados como Património Mundial beneficiaram durante vários anos – podemos dizer que pacificamente – de isenção de Imposto Municipal sobre Imóveis, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 44.º, n.º 1, alínea n) do Estatuto dos Benefícios Fiscais e 15.º, n.º 2, 3 e 7 da Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro (Lei de Bases do Património Cultural).
Com efeito, estabelece o artigo 44.º, n.º 1, alínea n), do Estatuto dos Benefícios Fiscais que "(e)stão isentos de imposto municipal sobre imóveis: (...) n) Os prédios classificados como monumentos nacionais e os prédios individualmente classificados como de interesse público ou de interesse municipal, nos termos da legislação aplicável". Por sua vez, o artigo 15.º da Lei n.º 107/2011 (legislação aplicável ao caso e para a qual o Estatuto das Benefícios Fiscais expressarnente remete) consagra, no seu n.º 2, que "os bens móveis e imóveis podem ser classificados como de interesse nacional de interesse público ou de interesse municipal". Esclarece o n.º 3 do mesmo preceito que "para os bens imóveis classificados como se interesse nacional, sejam eles monumentos, conjuntos ou sítios, adoptar-se-á, a designação «tesouro nacional»", sendo que, nos termos do n.º 7, "os bens culturais imóveis incluídos na lista do património mundial integram, para todos os efeitos e na respetiva categoria, a lista dos bens classificados como de interesse nacional".
Da articulação daqueles preceitos, parece resultar que os imóveis situados nos Centros Históricos incluídos na Lista do Património Mundial da UNESCO classificam-se como sendo de interesse nacional, inserindo-se na categoria de "monumentos nacionais" e, beneficiando, por conseguinte, da isenção consagrada na alínea n), do n.º 1, do artigo 44.º, do Estatuto dos Benefícios Fiscais. Desta forma, a classificação corno "monumento nacional" não depende, em nossa opinião, das características intrínsecas de um imóvel em concreto, decorrendo antes do facto de este se inserir em um conjunto incluído na Lista do Património Mundial, sendo que, durante muito tempo, a Autoridade Tributária adotou, na maioria dos conjuntos classificados, urna conduta concordante com este entendimento.
Sucede, porém, que, recentemente, a Autoridade Tributária veio a alterar esta posição, o que se traduziu no indeferimento dos pedidos entretanto apresentados e também, em vários casos, na revogação dos benefícios fiscais anteriormente reconhecidos.
Sustenta a Autoridade Tributária nesta matéria que, com a entrada em vigor da Lei n.º 53-A/2006, de 29 Dezembro. foi introduzido um novo elemento literal no texto artigo 44.º, n.º 1, alínea n) do Estatuto dos Benefícios Fiscais - a classificação individual do prédio. Esta questão terá inicialmente, surgido no Centro Histórico de Évora, primeiro local onde existe nota de a Autoridade Tributária ter perfilhado o entendimento explicitado e, nesta medida, negado este beneficio fiscal aos prédios situados naquele Centro Histórico, facto que motivou, aliás, que a Assembleia da República se pronunciasse sobre a questão. Nesta sequência, recomendou ao Governo a adoção das medidas necessárias ao reconhecimento da isenção de Imposto Municipal sobre Imóveis aos prédios sitos no Centro Histórico de Évora, em condições semelhantes às que se verificavam, designadamente, nos Centros Históricos do Porto e Guimarães. No entanto e, não obstante sermos da opinião que esta Resolução espelha a intenção do legislador de incluir, no âmbito desta isenção de Imposto Municipal sobre Imóveis, todos os prédios que compõem o Centro Histórico classificado, a sua aprovação não parece ter provocado uma alteração da conduta da Autoridade Tributária no caso do Centro Histórico de Évora. E tanto assim é que, actualmente, esta posição estendeu-se aos restantes Centros Históricos classificados, assistindo-se a urna mudança de interpretação dos pressupostos de concessão dos beneficias fiscais nesta matéria.
O problema, apesar de não ser novo, tem-se acentuado recentemente com a notificação de diversos contribuintes da decisão da Autoridade Tributária de, com efeitos retroactivos, cessar a isenção de Imposto Municipal sobre Imóveis concedida, o que suscita, desde logo, questões quanto à legalidade deste ato.
O Tribunal Administrativo e Fiscal já foi chamado a pronunciar-se, em casos concretos, sobre a legalidade da actuação da Autoridade Tributária, embora e, tanto quanto temos conhecimento, ainda não tenha sido proferida nenhuma decisão. Paralelamente, os protestos dos contribuintes confrontados com a nova interpretação da Autoridade Tributária motivaram, ainda, a intervenção dos Presidentes de Câmara dos Municípios nos quais se insere o património classificado, os quais procuram uma solução concertada e célere para o problema.
Sem prejuízo da posição que venha a ser adotada pela nossa jurisprudência, terá relevo denotar que a classificação como Património Mundial da UNESCO acarreta, para os proprietários dos bens classificados, limitações ao seu direito de propriedade, as quais visam salvaguardar as características do bem classificado. Como tal, os benefícios criados revelam-se como uma contrapartida para aqueles proprietários, no sentido de promover, e incentivar, não só a fixação da população nos Centros Históricos. como também a recuperação do parque edificado destes Centros que, outrora. estavam vetados ao abandono e degradação. Neste contexto, o beneficio fiscal previsto na alínea n), do n.° 1, do artigo 44.°, do Estatuto dos Benefícios Fiscais, o qual se afigura como um verdadeiro incentivo fiscal, é um instrumento de estímulo à requalificação urbana e repovoamento dos Centros Históricos.
Ademais, sublinhe-se que a interpretação efectuada pela Autoridade Tributária não parece ter acolhimento na letra daquele preceito, na medida em que, em matéria de classificação, é feita uma remissão expressa para a Lei de Bases do Património Cultural. a qual insere os conjuntos classificados como Património Mundial na categoria dos bens de interesse nacional, não distinguindo o todo - o conjunto denominado Centro Histórico - dos prédios que, em concreto, o compõem. Refira-se, ainda, que a classificação é conferida a todo o aglomerado de bens móveis e imóveis que integram circunscrição territorial classificada como Património Mundial, por ser toda esta realidade que, globalmente considerada, confere identidade ao Centre Histórico. Assim, dissociar o Centro Histórico dos elementos, designadamente os edifícios, que o constituem, equivaleria a esvaziar muito do sentido útil das normas constantes da Lei de Bases do Património, bem como da alínea n), do n.º 1, do artigo 44.°, do Estatuto dos Beneficies Fiscais.
Em face do exposto, e perante a conduta que tem sido adotada pela Autoridade Tributária nesta matéria, a qual se pauta pela negação ou revogação de isenção de Imposto Municipal sobre Imóveis dos prédios situados nos Centros Históricos, não podemos deixar de questionar se, de facto, não foi fortemente limitado o incentivo para a fixação da população nestes locais. Com efeito, em virtude das políticas de reabilitação dos Centres Históricos, e da concessão de benefícios, muitos foram aqueles que, contrariando a tendência então verificada, voltaram a fixar-se nestes locais, pelo que será de equacionar o impacto negativo que a posição adotada pela Autoridade Tributária terá neste âmbito.
Assim e, sem prejuízo das medidas que poderão ser levadas a cabo pelo poder politico, importa alertar para a necessidade de reagir, perante os nossos Tribunais, às decisões de indeferimento ou revogação deste beneficio fiscal, pedindo que estes se pronunciem sobre a questão, de forma a clarificar e consolidar quais os incentivos efectivamente disponíveis aos proprietários dos Centros Históricos classificados como Património Mundial.
Por Maria Dulce Soares e Susana A. Duarte, advogadas na Abreu Advogados
Artigo publicado na Newsletter de Abril da Confidencial Imobiliário
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