27 agosto 2013

Reabilitar: investimento e... ato de amor


A prestigiada cadeia Cartier (joalharia e relojoaria) inaugurou recentemente uma grande loja em Lisboa, na Avenida da Liberdade, 240. Seria apenas mais um espaço de excelência, a juntar-se a outros na mais luxuosa artéria comercial da cidade, não fora o facto de este edifício ter estado longos anos devoluto e em avançado estado de degradação. Reabilitado, o imóvel mantém o charme da traça oitocentista original, a par do moderno design de interiores.

Em Lisboa desde 2004, o investidor francês Geoffroy Moreno, da Largetoile, foi o jovem responsável pela recuperação do edifício e por trazer a ele a famosa marca. Com a sua própria empresa, tem investido também na reabilitação de edifícios para habitação. Juntámo-lo, numa esplanada na Avenida da Liberdade, para uma conversa a dois com João Appleton, um engenheiro civil ligado ao LNEC que trabalha na reabilitação urbana de Lisboa há cerca de 40 anos (atualmente, com a sua empresa a2p). Juntos, concluíram que não é verdade que a construção nova saia mais barata que a reabilitação - “um mito”, dizem.

São os representantes de duas gerações, um lisboeta de gema e outro por adoção, para quem a reabilitação do edificado da cidade é também “um ato de amor por Lisboa”. Num momento em que a autarquia nela investe a verba de 117 milhões de euros, através do programa PIPARU, é importante perceber que a reabilitação, consistente, do edificado lisboeta só é possível pelo investimento privado e que recuperar edifícios traz aliciantes benefícios fiscais e financeiros, valorizando o património da cidade, exponenciando a sua competitividade económica.

Geoffroy Moreno [GM] Comecei a minha atividade em Lisboa como consultor, para atrair investidores estrangeiros. Com a Largetoile, arranquei com este edifício da Avenida da Liberdade, onde muitas cadeias querem abrir a sua loja para o mercado de luxo, e que era de um promotor que estava em falência. Pensei que era um ativo fabuloso, pelas suas carateristicas e pela sua visibilidade. O projeto que herdei não era bom nem viável e comecei a trabalhar num novo, com a câmara, com o IGESPAR e com um potencial cliente – a Cartier. Pensei num projeto que não descaracterizasse o edifício e ao mesmo tempo se adaptasse às necessidades do cliente. Acabei conseguindo arrendar o espaço comercial à Cartier, 16 meses antes de entregar a obra, viabilizando o investimento. Entretanto comecei, com uma empresa própria, a investir na reabilitação de pequenos prédios para habitação, sobretudo em Alfama, Graça, Baixa, Chiado. Estou muito empenhado nisto, até porque existe uma grande procura de edifícios reabilitados na área da habitação e da hotelaria.

João Appleton [JA] Existe agora uma grande tendência de recuperação de edifícios para hotelaria. Nós [a empresa a2p] recuperámos um para hotel aqui na Avenida da Liberdade.

[GM] Está outro em marcha ali mais abaixo, outro na Baixa, entre outros em locais diversos. A falta de financiamento é que está a dificultar os promotores no arranque de novos projetos, sobretudo na área do comércio e escritórios. Vale algum investimento estrangeiro, como o brasileiro, em lojas prime, sobretudo aqui, onde tive várias propostas de compra do espaço da Cartier.

[JA] Mas o mercado prometedor para a reabilitação é mesmo o da habitação. Primeiro porque existe espalhada pela cidade toda, com sítios excecionais, como os mais antigos, que são sempre os mais procurados. Ainda há muitos edifícios devolutos, mas para haver investimento tem que haver financiamento e a banca tem constituído um problema.
Mas existem outros mecanismos que são muito interessantes, atraentes sobretudo para habitação: como a câmara determinou praticamente toda a cidade como área de reabilitação urbana, isso permite usufruir de vantagens fiscais, quer na redução da taxa de IVA em materiais e mão de obra, quer pela redução de outras taxas e impostos, como a isenção de IMT e do IMI, redução do IRS, etc. E se, como a câmara quer, parte dos fundos europeus vierem a ser destinados à reabilitação ao abrigo de programas de eficiência energética e de reforço estrutural e antissísmico, o panorama pode ser ainda mais interessante. 
A prova deste interesse na reabilitação são os leilões de edifícios devolutos que a autarquia está a fazer, através do programa Reabilite Primeiro e Pague Depois, e que têm tido uma procura muito superior à oferta. São edifícios pequenos, até 1000 / 1500 m2, que não exigem grandes investimentos.

[GM] Tenho ido a esses leilões. No primeiro havia 34 prédios, em zonas como Alfama, Santa Catarina ou Ajuda, havia umas 150 pessoas, a maior parte particulares que não eram promotores imobiliários. Já houve outros dois, o último no dia 4 de julho. Felizmente a câmara mudou e tem feito coisas para dinamizar, cortando com um passado vergonhoso de burocracia pesada, em que milhares de edifícios abandonados não mereciam atenção. É uma mudança positiva, que trouxe uma grande dinamização, sobretudo nas zonas turísticas, pois o aluguer para esse fim tem imensas possibilidades e uma procura imensa. Os números do turismo crescem 7 ou 8% ao ano!

[JA] Desse ponto de vista, no meio de uma crise tremenda, o turismo em Lisboa é uma situação excecional, melhorando dia a dia. O pequeno promotor pode pagar a casa, ficando a viver num andar e alugando ou vendendo os outros apartamentos. Os preços quer de venda, quer de aluguer para turistas, são muito atraentes, porque muito competitivos com os das outras cidades europeias. Até porque saem muito mais económicos do que os hotéis para estrangeiros que chegam com as famílias para passar temporadas mais longas.
É um novo mercado. Lisboa está crescer muito nesta área, porque é uma cidade muito bonita e está na moda, com um rio extraordinário, combinando luminosidade, cor e old fashion.
São condições fantásticas e por isso continua a crescer no turismo e é preciso aproveitar, não tratando apenas dos turistas, mas cuidando também dos seus cidadãos, porque isso é importante para atrair outros cidadãos à cidade. O turismo é uma forma de Lisboa aumentar a sua autoestima, porque ninguém gosta de mostrar a sua casa mal cuidada. O Geoffroy, que combina a zona prime com as zonas históricas na sua atividade, deve ter-se apercebido desta realidade.

[GM] Sim, tenho uma ligação especial a Alfama, até porque é lá que vivo, junto ao Palácio Dona Rosa.

[JA] Eu estou a fazer a reabilitação do Palácio Dona Rosa! com o arquiteto Frederico Valssassina.

[GM] Então somos vizinhos!
A minha preferência por Alfama tem também que ver com a facilidade com que agora posso avançar com os projetos. Quando cheguei, o mundo do licenciamento camarário era tenebroso e encontrei muitos promotores traumatizados com a demora na aprovação dos projetos, que chegava a ser de seis anos! Desde 2010 que tudo está diferente. Agora, desde que deu entrada na câmara este projeto do edifício da Cartier até à conclusão das obras passaram apenas 24 meses. São prazos europeus, razoáveis, que dão confiança ao investidor. Em Alfama tenho trabalhado com a responsável municipal por esta área da cidade, e vejo os processos agilizados em comparação com o que se passava dantes, o que é muito motivador.

[JA] Tenho trabalhado também com essa responsável, incluindo projetos para a própria câmara, de obras que tinham ficado paradas vários anos e depois retomadas, em São João da Praça e outros locais do bairro, também na Mouraria. E confirmo o que disse. É grande a mudança na eficiência da câmara, a que não é alheio o facto de o responsável pelos serviços do urbanismo ser, ele próprio, uma pessoa que praticou a arquitetura pública e privada durante muitos anos e, por isso, compreende muito bem as dificuldades da demora no licenciamento, pois em muitos casos os custos mais elevados de uma promoção imobiliária são os do tempo de espera.

[GM] Exatamente. Por exemplo, dei entrada do projeto para o hotel no 278 desta avenida, já todo desenhado, em 2005, e só obtive a licença de construção em 2010, quando, com a crise, já não havia financiamento e foi um desastre...
Agora, com o 240 (Cartier), foi menos de um ano. O IGESPAR deu logo o parecer e foi tudo rápido na câmara.

[JA] É tudo mais rápido. Um problema que a Câmara tinha era o dos circuitos burocráticos por que passava o projeto: se não fosse minimamente compatível com o que determinado serviço achava, demorava tanto tempo a voltar para trás que quando chegava ao promotor para as devidas correções já tinham passado muitos meses.
Tudo ficou mais fácil porque foi criada uma comissão que reúne na câmara com a direção geral do Património Cultural (antigo IGESPAR) e outro dos serviços da Cultura, e que funciona como uma boa troika, já que permite de uma forma célere um princípio de aprovação para o projeto que está a ser lançado, com critérios transparentes sobre o que é legítimo ou não. É mais fácil e mais barato ficar logo a saber as regras do jogo e com o que se pode contar.
Isto surgiu, na sequência do trabalho do arquiteto Siza Vieira de reconstrução do Chiado, a propósito da Baixa Pombalina, porque esta estava na zona de proteção do Terreiro do Paço e havia a candidatura prematura da Baixa a Património da Humanidade. E o vereador Manuel Salgado esteve antes ligado a uma comissão que estudou o assunto. Quando veio para a câmara implementou o Plano de Pormenor e Regulamento da Baixa, já com a comissão com o IGESPAR, que permitiu desbloquear os licenciamentos.
E a Baixa dentro de dez anos vai estar irreconhecível, com uma transformação profundíssima: surgiram vários polos, como o Museu da Moda e do Design, o quarteirão do Museu do Banco de Portugal, e, em breve, o percurso da Rua da Vitória para o Castelo, os terraços do Carmo, etc.

[GM] Isso tudo cria uma nova vontade de viver no centro da cidade. Os casais jovens, hoje, dão valor não só ao conforto da modernidade interior de uma casa, mas também ao seu valor patrimonial das cantarias, dos azulejos, da escada antiga. Um prédio grande que reabilitei na Rua de S. José, atrás do Tivoli, foi todo vendido em seis meses, a seis clientes portugueses, que eram casais jovens.

[JA] Dantes, as pessoas iam para construção nova, nos arredores de Lisboa, levando ao despovoamento da cidade, porque achavam que uma casa nova era mais cómoda e ainda por cima mais barata do que o que encontravam em Lisboa. Depois começaram a perceber que essa qualidade não era assim tão boa e que a comodidade, mais aparente que real, era consumida nas horas que levavam para se deslocarem de casa para o trabalho e do trabalho para casa.
Com a crise, há males que vêm por bem: a tragédia que é a paralisação da construção nas zonas suburbanas, onde há milhares de casas vazias por vender, é motivo de crescimento da vontade de regresso ao investimento na cidade, por um lado, que é onde há muita gente jovem que percebe a lógica de viver na cidade, podendo deslocar-se rapidamente a pé, de transporte público ou mesmo de bicicleta, por outro. Aqui há milhares de fogos disponíveis para reabilitação, e é verdade que as dificuldades de acesso ao crédito ressuscitaram o mercado de arrendamento, tornando mais apetecível e rentável a opção pela reabilitação desses fogos. Daí surgir uma mudança no perfil dos promotores e no perfil da procura. A construção nova está condenada, simplesmente porque temos edifícios a mais nos subúrbios, muitos dos quais nunca virão a ser habitados.
Estes jovens que querem viver no centro de Lisboa são a geração mais bem preparada de sempre, e corremos o risco de a desperdiçar com a crise de emprego. São jovens que valorizam cada vez mais a cultura, e o património edificado é cultura. Quando se olha para uma zona com séculos de história a sensação é completamente diferente. E é aqui que estão os museus e os espetáculos e a vida urbana na sua essência.

[GM] Mesmo que fosse mais caro construir de novo do que reabilitar, as medidas fiscais que a câmara decidiu fazem baixar o custo de construção em 17%, o suficiente para se conseguir viabilizar esta opção. O custo de construção por metro quadrado, novo ou reabilitado, anda à volta de 1.600 ou 1.700 euros, mas a reabilitação tem o aliciante das medidas fiscais. E fica a traça antiga, a história, cada vez mais valorizada. O que faz as pessoas apaixonarem-se por um local.

[JA] A ideia de que a reabilitação é mais cara do que a construção nova é um mito, por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, era a falta de preparação dos projetistas, que não sabiam pegar em materiais que já não tinham aprendido nas escolas. Diziam que não faziam porque era caro, mas na verdade não faziam porque não sabiam fazer. A outra razão era o tempo excessivo no licenciamento.
Hoje tudo é diferente. E não se pode comparar uma construção em Odivelas com uma no centro, mesmo que em euros seja igual. E temos que contabilizar o transporte dos materiais de um edifício demolido para os vazadouros e dos materiais usados na obra nova, até em energia e em CO2, não é tudo em euros, também há custos ambientais. Já para não falar do valor patrimonial do edifício reabilitado, pelo que significa no impacto do turismo e no valor intangível que é a cultura, que é o setor da economia com maior efeito multiplicador. E é isto que atinge o coração das pessoas. Devia poder estabelecer-se em euros o que vale nós apaixonarmo-nos por um edifício ou uma cidade histórica.

Fonte: Entrevista publicada na Revista Lisboa, edição de Julho

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