Pela Carta Circular nº 26/2015/DSC, de 30 de Março de 2015, o Banco de Portugal transmitiu às instituições de crédito nacionais sob a sua supervisão o entendimento que perfilha sobre a aplicação aos contratos de crédito e de financiamento, concedidos a consumidores e empresas no mercado nacional, das taxas de juro EURIBOR, se este indexante assumir valores negativos. Recordamos que esta tomada de posição do Banco Central surge num contexto, até há pouco tempo impensável, de taxas EURIBOR a um mês em valores negativos, estando nos outros prazos mais populares como referência nas prestações de crédito, designadamente a 3 e 6 meses, igualmente em queda livre.
Lembramos igualmente que, quer no crédito à habitação, quer no crédito a empresas, tem sido de há vários anos a esta parte prática usual das instituições de crédito, a fixação da taxa de juro das operações de crédito, por referência a um índice ou indexante – sendo o mais vulgar a referida EURIBOR num dos seus prazos – a que acresce um spread, que corresponde à margem/lucro que a instituição verdadeiramente aufere no crédito que concede. Não podemos, ainda, olvidar que a chamada EURIBOR, ou European InterBank Offer Rate não é mais do que a taxa a que um painel de Bancos líderes está disponível para ceder liquidez entre si – o que significa que só haverá ganho na concessão pelos bancos de crédito aos seus clientes caso cobrem uma remuneração acima da EURIBOR.
Neste quadro, o que é que o Banco Central veio defender na aludida Carta Circular nº 26/2015/DSC? Em primeiro lugar, invocando o art. 3º do Decreto-Lei nº 240/2006, de 22 de Dezembro – normal instrumental que define que, quando a taxa de juro aplicada a contratos de crédito e de financiamento esteja indexada a um índice de referência, deve resultar da média aritmética simples das cotações diárias do mês anterior ao período de contagem de juros – apressa-se a concluir que, nos contratos em curso, “… não podem ser introduzidos limites à variação do indexante que impeçam a plena produção de efeitos decorrentes da aplicação desta regra legal”. O que equivale por dizer que se, por absurdo e no limite, uma dada taxa EURIBOR de referência de um contrato de crédito tiver um valor de tal forma negativo, que absorva a totalidade do spread do Banco credor, este poderá ainda ter que “pagar” ao cliente juros pelo crédito que concedeu.
O Banco de Portugal tranquiliza-nos depois, dizendo que “… conquanto não seja admissível a previsão de cláusulas que impeçam a plena produção dos efeitos decorrentes da evolução dos indexantes para valores negativos…” por força do aludido preceito, as instituições de crédito poderão, por outras vias, acautelar os efeitos da referida evolução nos contratos que venham a celebrar no futuro. E, ainda que admitindo outras “soluções contratuais legalmente admissíveis”, indica o caminho, que merecerá a sua preferência, da comercialização pelas instituições de crédito que estejam habilitadas a actuar como intermediários financeiros, aquando da celebração dos novos contratos de crédito ou de financiamento, de instrumentos financeiros derivados – v.g. swaps de taxas de juro.
A orientação ora transmitida pelo Banco Central é, a n/ ver, francamente criticável por três razões fundamentais. Em primeiro lugar, funda-se, de forma assaz insuficiente, numa norma meramente instrumental – o referido art. 3º do Decreto-Lei nº 240/2006, de 22 de Dezembro -, para tomar posição quanto a uma questão de fundo, qual seja a da essência do negócio bancário. Não querendo nem podendo ser exaustivo nesta sede, é da natureza do mútuo bancário, enquanto subtipo do mútuo oneroso de dinheiro, precisamente, a sua “onerosidade”, o que significa que o mutuário tem obrigação e restituir o que lhe foi emprestado, acrescido do pagamento de juros. A n/ ver, o regulador não podia, sob a capa da forma de cálculo de um índice de referência, admitir a possibilidade de as instituições que supervisiona, não só deixarem de ser remuneradas, como, no limite, passarem a remunerar os seus clientes pelo crédito que lhes concederam.
Em segundo lugar, teremos que ser claros: as instituições de crédito apenas utilizam índices de referência na concessão de crédito, como a EURIBOR, para terem uma referência objectiva para a remuneração do mesmo crédito, sempre no pressuposto de que o índice se mantém em terreno positivo – no limite, a zero. A passagem de um índice de referência de crédito para terreno negativo será algo completamente imprevisto e imprevisível, traduzindo uma verdadeira alteração superveniente de circunstâncias, invocável pela instituição no quadro dos contratos estabelecidos com os clientes.
Finalmente e num plano mais geral, no quadro actual do sistema bancário nacional, com instituições de crédito exangues, na incerteza quanto à factura que terão que pagar com a venda do Novo Banco, sem condições para conceder crédito (porque nalgumas delas ainda decorre o processo de redução da proporção do crédito face a depósitos a que estão obrigadas), a orientação ora estabelecida pelo Banco de Portugal revela uma visão míope, que não beneficia, antes prejudica, a prazo, os consumidores e as empresas.
Artigo de Manuel Camarate de Campos, da RSA LP, publicado no site da Vida Imobiliária em Abril de 2015
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