23 agosto 2015

Edifícios devolutos: reabilitar mas com regras


O agravamento do IMI para os imóveis desocupados e o atual interesse imobiliário está a levar à recuperação de edifícios. Mas há um longo caminho a percorrer. Foi o primeiro centro comercial do país, inaugurado em 1951, no Monte Estoril, muito antes de surgir a primeira vaga de shoppings liderada pelo Apolo 70, em Lisboa, que só viria a abrir portas em 1971. O centro comercial Cruzeiro era então um fervilhante ponto de encontro de uma classe social privilegiada e cosmopolita que incluía muitos estrangeiros endinheirados, que em Portugal tinham encontrado um refúgio seguro durante a Segunda Guerra Mundial.


Devoluto há anos, o edifício Cruzeiro que chegou a ter um projeto habitacional previsto pelo BPI, proprietário do imóvel, vai ter outro fim. A Câmara de Cascais já chegou a acordo com o banco, numa compra avaliada em €100 mil, estando agora o processo a seguir os trâmites legais. A ideia, diz. o presidente da autarquia, Carlos Carreiras, "é fazer do Cruzeiro uma nova centralidade no Estoril, dedicada às artes, caso o edifício tenha condições estruturais para tal. Caso assim não seja, e no cumprimento do acordo que estabelecemos com o BPI, só poderá ser um espaço público, mais concretamente um jardim". 

À semelhança do Cruzeiro, muitos outros edifícios abandonados há décadas começam agora a vislumbrar novos usos. O agravamento do IMI para imóveis devolutos, o aumento do turismo e o consequente interesse imobiliário por certas zonas está a estimular a recuperação do edificado. "Muitos edifícios que ficam anos ao abandono estão essencialmente sujeitos a fatores especulativos. Até agora não havia penalizações para quem deixava ficar o edifício devoluto à espera de melhores dias mas isso agora já não é tão fácil. Além de que neste momento as coisas começam a mexer e muitos andam à procura de bons negócios imobiliários, o que ajuda à reabilitação", diz Vítor Cóias, presidente do GeCorpa, Grémio do Património, associação de empresas e profissionais que exercem atividade na fileira da reabilitação do edificado. Outra grande mudança, diz o responsável, é que "vai havendo urna crescente sensibilização junto da população para aquilo que dá valor à cidade e os políticos estão atentos a isso". 

Mas, defende, o processo deve ser feito respeitando a identidade arquitetónica dos edifícios, sem que esta se reduza ao chamado 'fachadismo'. "É uma opção que os promotores muito gostam, em que fazem uma construção nova usando como cenário apenas a fachada do edifício antigo", diz Vítor Cóias, acrescentando, no entanto, que em certos casos a degradação já está tão avançada que nada mais é possível preservar além da fachada.

Paulo Ferrero, fundador do movimento cívico Fórum. Cidadania Lisboa, que acompanha tudo o que vai acontecendo na capital, fala também do movimento especulativo que está por trás de muitas situações de abandono de edifícios na cidade: ao invés de se construir de imediato salvaguardando as regras que defendem a estrutura original do edifício, muitas vezes prefere-se deixar ruir e edificar depois já sem essas limitações legais, maximizando assim o lucro no então já inevitável processo de reconstrução.

Histórias do edificado 

"Cada prédio tem sempre uma história por trás mas a história é quase sempre a mesma: os proprietários faliram, o imóvel foi parar aos bancos e seguradoras, com as imobiliárias pelo meio, mas é deixado ao abandono, as janelas abertas, uma parede que desaparece, elementos decorativos que são roubados, um, incêndio que acontece, até chegar-se ao risco de ruína! Depois criou-se o mito que é muito caro fazer o restauro. No entretanto, passaram-se 10, 15 , 20 anos mas compensa". 

Apesar de muito crítico na forma como se reabilita na cidade de Lisboa, Paulo Ferrem destaca alguns bons exemplos de recuperação de edificado, como é o caso da intervenção recente que deu origem ao novíssimo hotel H1O, na Duque de Loulé (na foto). "Apesar de só estar implícita a preservação da fachada (neste caso das três fachadas), todos se empenharam nesse processo. Este edifício edificado junto à pontezinha sobre a Rua de Santa Marta, além de estar abandonado, estava mal construído pois encontra-se implantado numa zona que teve deslizamentos sucessivos e isso provocou diversas rachas ao imóvel", conta. A certa altura, acrescenta, "a avaliação feita era para deitar tudo abaixo que era o mais fácil - ou era todo reforçado a nível da estrutura requerendo um esforço titânico. E tanto a câmara municipal, mas sobretudo o promotor que teve paciência, e os arquitetos e os engenheiros de estruturas se empenharam para conseguir salvar aquilo. O certo é que está ali aquele bloco que fazia falta na Duque de Loulé, apesar de ser só fachada".

Mas há ainda um longo caminho a percorrer para surgirem muitos bons exemplos como este, remata Paulo Ferrero.

O Fórum Cidadania Lisboa fez recentemente um inventário online com cerca de 30 palácios e palacetes, públicos e privados existentes em Lisboa e em mau estado de conservação, apesar da sua importância histórica e patrimonial. Um levantamento que fez chegar à Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) e à Câmara de Lisboa, proprietária de 16 destes cerca de 30 palácios. Paulo Ferrero lamenta este estado de degradação e a falta de visão por parte das empresas que poderiam converter estes espaços em locais de trabalho.

"Vai-se lá para fora e vê-se palacetes a serem sedes de empresas. Aqui em Lisboa há muitos palacetes que poderiam ser adaptados a este uso mas as nossas empresas preferem edifícios luxuosos ou nem tanto, têm é de ser modernos. Os consulados o mesmo. Os clubes, ainda há um ou dois casos positivos que conseguiram resgatar palacetes - por exemplo, o Clube Militar Naval na Defensores de Chaves está muito bem. Devia haver mais bons exemplos destes. E quem diz clubes diz federações. Por que razão a Federação Portuguesa de Futebol está a ocupar um mamarracho na Rua Braamcamp e não vai ocupar um palacete destes? Ou os consulados?", questiona este responsável. 

A ausência de interessados vai ditando o estado de abandono deste valioso edificado, alguns com séculos de existência, realça Paulo Ferrem. "Estou a lembrar-me do Palácio do Barão do Alvito, cá em baixo no Conde Barão, que pertence a vários fundos, entre eles um privado, e que está ali abandonado há muito tempo, tendo projetos sucessivamente aprovados mas não anda para a frente e logo ao lado, o Palácio Almada Carvalhais, também de vários fundos, entre eles um fundo público da CGD (que tem 30% das ações), e que também está ali abandonado...". Ambos foram construídos no século XVI e o Palácio Almada Carvalhais, mais conhecido como Palácio dos Almadas, foi classificado como monumento nacional desde 1920.

800 mil casas vazias 
A situação de abandono não se restringe aos grandes edifícios. O presidente do Grémio Património lembra que ha "800 mil casas devolutas". O forte crescimento da construção que ocorreu entre as décadas de 80 e 2000, "com anos em que se construíram 100 mil imóveis, o que dá uma casa construída em cada cinco minutos", está na origem desta situação, diz Vítor Cóias. Com quase 80% de portugueses como (eventuais) proprietários das suas casas, o contraste é grande em relação aos outros países europeus. "Na Alemanha, há 30% de proprietários, por exemplo. Não foi à toa que a troika percebeu que com a nossa estrutura em termos de propriedade existia aqui um manancial de captação de recursos financeiros em impostos sobre os imóveis", remata este responsável.

Fonte: Expresso

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